Suponha o leitor que lê no seu jornal favorito o seguinte título em letras garrafais:

“INVESTIGADORES EM GREVE GERAL”.

Ficaria preocupado? Será que o trabalho dos investigadores científicos é assim tão importante que não admita uma interrupção? Provavelmente, o leitor não ficaria sobressaltado, por pensar que de tal greve não adviria mal maior ao país ou ao mundo. A situação já seria diferente se se tratasse de uma greve dos padeiros ou dos motoristas de autocarros. Ninguém gosta de não ter pão fresco de manhã ou de não ter o autocarro a horas para ir trabalhar.

No entanto, quer o fabrico do pão quer os serviços de autocarros têm a ver, de uma maneira ou de outra, com resultados alcançados em processos de investigação científica. A investigação ou pesquisa científica, que basicamente consiste em saber mais sobre qualquer assunto, acaba por estar relacionada com o quotidiano de todos nós. Se outras razões não houvesse, bastaria essa para nos interrogarmos sobre o que vem a ser a “investigação”. O que é investigar?

A palavra “investigação” surgiu só no século XV, pouco antes da Revolução Científica que deu origem à ciência moderna. Provém do latim: resultou de juntar “in” a “vestigium”, o que literalmente significa ir atrás de pegadas, seguir o rasto de alguém. De acordo com a etimologia, o investigador científico vai atrás de marcas. A sua tarefa é semelhante à de um detective. Um cientista é um Sherlock Holmes, que de lupa em riste, examina os mínimos vestígios para saber quem é o criminoso…

Curioso é notar que o título do jornal escrito acima poderia afinal preocupar os portugueses se eles pensassem que os investigadores em causa não eram os investigadores científicos, mas sim os investigadores da Polícia Judiciária. Haveria boas razões para isso: Uma greve geral desse corpo de polícia, ao deixar os criminosos incólumes, colocaria em risco a segurança dos cidadãos…

As semelhanças entre um investigador científico e um polícia judiciário são reais e podem ser aprofundadas. Se se consultar um dicionário moderno, como o da Academia de Ciências de Lisboa, encontra-se que investigar é realizar uma “pesquisa crítica e sistemática, com base por exemplo na experimentação, que se destina a rever conclusões aceites à luz de factos novos.” Trata-se de uma boa definição. Pesquisa significa procura cuidadosa (em inglês, a palavra é “research” e em francês “recherche”, quer uma quer outra traduzidas à letra dão “procura repetida”). Os atributos “crítica” e “sistemática” reforçam aquilo que uma pesquisa é. O investigador tem de se interrogar permanentemente sobre se estará ou não a cometer erros. E o investigador tem de executar um conjunto de procedimentos o mais completo possível. Usando a linguagem do famoso personagem de Conan Doyle, o investigador tem de inquirir a si próprio se está na pista certa e tem de explorar todas as pistas.

Continuando a decifrar o dignificado do dicionário, atente-se na expressão “por exemplo” antes de experimentação. Ela significa que a investigação pode ter ou não carácter experimental. Tem, decerto, nas ciências físico-químicas ou nas ciências biológicas. Pelo contrário, em ciências sociais e humanas, as possibilidades de experimentar são muito reduzidas, pelo que a investigação nessas áreas não é experimental. Mas, em casos de polícia, fazem-se muitas vezes experiências para apurar o modo como tudo se passou. A investigação criminal apoia-se em larga medida em procedimentos laboratoriais das ciências físico-químicas e das ciências biológicas. E fazem-se também reconstituições de crimes, que são verdadeiras experiências.

O fundamental da definição de investigar vem talvez no fim: “rever conclusões aceites à luz de factos novos”. Investigar não é procurar à toa, mas sim avançar uma hipótese, que é tacitamente aceite, e procurar saber se ela está ou não errada. Se ela se revelar inconsistente com um dado facto que antes não se conhecia, então terá de ser substituída. Por exemplo, no caso de um detective, a hipótese inicial pode ser “o criminoso é o mordomo”. No entanto, descobertos novos vestígios, o criminoso pode muito bem ser o jardineiro ou o motorista (havia pistas falsas!). É aqui que reside a dificuldade do trabalho investigativo. É que não se trata apenas de procurar de uma maneira cuidadosa, o que estaria ao alcance de muita gente. Mas sim de chegar a um resultado que anteriormente não era conhecido. Isso só está ao alcance de um verdadeiro Sherlock Holmes…

Muitas vezes usa-se a palavra “investigar” numa acepção trivial. Quando alguém estuda um dado assunto por um livro, poderá chegar a conclusões novas para si. Porém, essas conclusões não são decerto novas para o autor ou autores do livro. Na verdadeira acepção de “investigar”, o sujeito tem de chegar a conclusões que são novas não apenas para ele, mas novas para toda a gente. Tal exige outras qualidades para além da mera perseverança, nomeadamente a inteligência e a criatividade. Ele tem de ver mais do que toda a gente antes dele viu. Se possível, o resultado a que chega deve ser simples, isto é, deve ser evidente para toda a gente uma vez revelado publicamente. “Elementar, meu caro Watson!”. Einstein dizia que uma “teoria deve ser tão simples quanto possível, mas não mais simples do que isso.”

Não é fácil ser investigador. Existirão no mundo cerca de um milhão de cientistas (números redondos). Em Portugal não passarão de dez mil (também números redondos). Essas pessoas, depois de um treino prolongado – demora bastante o treino para investigador – adquiriram a capacidade manifestamente rara de chegar a conclusões diferentes das que são aceites, examinando com atenção a evidência disponível (aquilo que se pode chamar a “prova”, que no caso do Sherlock Holmes pode ser uma impressão digital deixada no local do crime).

Esta analogia entre um investigador científico e um investigador judiciário, apesar de fecunda, é também ilusória (como são, aliás, todas as analogias). Normalmente um crime só é investigado, em segredo, por um pequeno grupo de investigadores. Ora, em ciência, o “crime” é um facto respeitante à Natureza ou ao Homem e vários grupos de investigadores perseguem ao mesmo tempo esses factos, em saudável competição uns com os outros, anunciando os seus resultados uns aos outros. Normalmente, alguém chega primeiro, mas os outros não desistem e acabam por confirmar (ou não) o resultado de quem chegou primeiro. Mas mais: Um investigador criminal faz o seu trabalho em geral sozinho, ou em pequenas equipas; porém, dada a magnitude das tarefas exigidas, muitos cientistas experimentais trabalham hoje em grandes equipas. Por outro lado, na investigação judiciária, quem acaba por atribuir a culpabilidade não é o detective mas sim um juiz, ao passo que na investigação científica quem proclama uma determinada conclusão acaba por ser a comunidade científica na área em causa, que funciona como uma espécie de colectivo de juízes. Não é verdade que os cientistas passem a vida a contradizer-se uns aos outros: eles acabam por se entender ao proferir os seus acórdãos comuns.

Além disso, na investigação judiciária, apesar de serem possíveis erros (os famosos erros judiciais) um crime acaba por ficar resolvido, não se falando mais nisso. Pelo contrário, na investigação científica as conclusões alcançadas só são válidas provisoriamente. Novas procuras permitirão rever as conclusões estabelecidas, alcançando outras que de alguma forma têm de abarcar as antigas. A ciência é cumulativa ao incorporar em cada ocasião de descoberta o essencial das descobertas anteriores.

Há mais diferenças. Tirando uma ou outra excepção, num caso de polícia acaba por se conhecer a verdade. Em ciência, porém, a verdade só idealmente é alcançável. Para alcançar a verdade, ou melhor, para detectar o erro, o trabalho dos investigadores científicos tem de ser permanente. E é por isso que uma interrupção desse trabalho – a tal greve de que falava no início – é um atraso na procura da verdade, um atraso de que os cidadãos deveriam reconhecer o prejuízo.

Fonte: De Rerum Natura